31/07/2014

"Eu não mando mais em nada / Sei que é alto mas eu vou pular" (Agridoce)

"Mãe, você picou alho?", perguntou minha filha mais nova assim que começou a mexer a panela após meu pedido. "Sim", eu disse. "Mas picou alho de verdade?". "Sim". "Mas tem alho picado pronto, no pote. É mais fácil". "É, mas não é alho de verdade, não tem cheiro de alho, não tem gosto de alho, é um arremedo de alho". "Arremedo? Que é isso?". "É imitação". "Hum, mas o alho do pote não foi feito com alho?". "Sim, foi. Mas para não estragar foram acrescentados alguns conservantes e outras coisas que a gente nem sabe direito o que são, então até é alho, mas não tem o mesmo sabor do natural". "Hum, entendi. Mãe, posso ir?". "Pode".
Enquanto eu terminava de temperar a lentilha que havia cozido para o almoço, continuei a pensar na conversa sobre o alho e em quantas coisas a gente aceita a imitação, mesmo sabendo disso. Aceitamos ser enganados e fingimos que gostamos. Café solúvel é um exemplo. Duvido alguém gostar de verdade de café solúvel. A não ser que essa pessoa jamais tenha tomado café antes, o que é pouco provável. Mas a gente compra café solúvel, "pras emergências", pra não coar só uma xícara de café, pra quando está apressado. E pior do que comprar, a gente toma o café solúvel. E toma até mesmo em dias de domingo, em que se teria todo o tempo do mundo pra coar um delicioso café - de preferência com o coador de pano, daquele jeito que nossas avós faziam (e nossas mães, antes da invenção da cafeteira elétrica). 
Se tem uma coisa que o alho e o café tem em comum é o cheiro. Tem coisa mais gostosa do que estar/chegar em casa e sentir um cheirinho de alho no ar, de comidinha feita com amor? Ou do cafezinho feito na hora, com um aroma que envolve e atiça? A satisfação está na mobilização dos sentidos, quantos mais... melhor. E um ingrediente que não pode faltar quando se trata de comida/bebida é o cheiro. O cheiro que faz falta nas suas versões arremedo. Você coloca o dito alho em pasta ou em pedaços a fritar e ele exala um cheiro cítrico, porque ficou embebido na solução para não estragar. Você coloca o café solúvel e ele não tem cheiro de nada. É bom pra comer com isopor junto. Ótima combinação. 
Trocamos os sucos naturais pelos de caixinha (que não têm nada de naturais ou saudáveis) ou de pacotinho; os temperos pelos caldos de carne, galinha, picanha, camarão, legumes... Compramos mistura para bolo em pacotinhos e fazemos bolos de cenoura, maçã, limão, laranja - sem usar uma fruta ou legume sequer! E o que eu acho mais bizarro ao ler as embalagens da maioria dos alimentos: pode conter traços de nozes, amêndoas, amendoim.
Hahaha, não basta não ter praticamente nada do que deveria ter, ainda tem que ter traços de uma coisa que nem deveria mesmo estar lá? E como assim? Uma amiga uma vez disse: como que os traços vão parar lá? alguém esbarra e... oops, foi mal... melhor advertir na embalagem que pode ter traços de amendoim, nozes, amêndoas. (Tá bom, eu sei que tem a ver com as esteiras que transportam os produtos nas empresas, mas não deixa de ser bizarro.)
E de repente a gente está tão acostumado a ser enrolado, a comprar gato por lebre, a comprar uma torta que deveria ser Floresta Negra, mas você encontra coco no meio e, enfim, resolve deixar pra lá porque cereja e coco são quase a mesma coisa - ou não são? 
Será que ainda saberemos distinguir os sabores naturais dos arremedos de sabores? Outro dia comprei caquis e, quando os comi, eles não tinham semente. Sabe o que isso significa? Que foram modificados. Geneticamente modificados. Tudo feito sob a aparência bonita de que, enfim, vamos produzir em quantidade e qualidade para reduzir a fome no mundo. Conversa fiada, pois a fome é problema político, não de falta de alimentos. E nós compramos essa balela toda porque é mais fácil comer melancia, caqui ou uva sem sementes - mesmo que a facilidade venha junto do aumento no uso de glifosato. 
Em nome da facilidade, da praticidade, da rapidez e em função da correria do dia a dia, das jornadas exaustivas de trabalho, do atropelo da vida acabamos por aceitar essas mudanças. E aí chega um ponto em que temos o arremedo tomando conta de tudo. 
De repente você nem ama aquela pessoa com que você está, mas ela está ali ao lado, é fácil. Então você se acovarda e não procura o verdadeiro sabor - será que ainda sabemos qual é?. Talvez você nem goste de seu trabalho, mas é o que você tem... pra que procurar por outro? É mais fácil continuar. Algumas vezes os limites do seu bairro, cidade, estado ou país são sufocantes, mas e daí? É mais fácil do que cruzar as fronteiras e descobrir que pode ir além delas que se fizeram nos seus pensamentos, nas suas crenças, nas suas verdades prontas e engarrafadas. Fáceis, mas sem graça, sem cheiro e sem sabor. 

Sei lá. Às vezes acho que parecemos hamster rodando, rodando, rodando. Como viemos parar aqui?






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