Ela
tinha um gato preto, mimado e manhoso, chamado Pretí (uma brincadeira entre a
cor do gato e uma suposta pronúncia francesa). Fiel companheiro que aquecia
seus pés nas noites de inverno e ciumento inveterado que se deitava sobre os
livros e apostilas – responsáveis pela falta de atenção de sua dona. Se ele tivesse
inteligência, teria sentido muita raiva da tal faculdade que ela tinha começado
a fazer.
Mas Pretí não sabia que logo teria
outro concorrente e também não imaginava que acabaria cedendo e gostando também
daquele que o ameaçava. Estudando ou não, ela sempre estava com o rádio ligado.
Sua avó dizia que era fácil saber quando ela estava em casa: se houvesse música
no ar, lá ela estaria - normalmente tentando gravar as suas preferidas em fitas
K7 que ela comprava com o minguado salário que recebia por trabalhar como
ajudante em uma creche.
Ela adorava Legião Urbana, como
qualquer jovem da época, mas nunca mais ouviu “Quando o sol bater na janela do
teu quarto” sem lembrar-se da menina e seu vestido de debutante que não seria
usado para festejar a vida, pois um carro havia levado seus sonhos e deixado um
vazio para quem a conhecia. Não fazia sentido vê-la dormir para sempre e não
parecia justo que outros continuassem a sonhar quando ela já não o fazia mais.
Leoni cantava “Garotos” e ela achava que era uma daquelas mulheres da
música até o dia em que o garoto do fusca azul, cabelo preto jogado para o lado
e um sorriso enorme no rosto partiu sem lhe dar adeus. Ele tinha sido o
primeiro a lhe dar flores, era uma noite fria, mas ele ofereceu seus lábios
quentes. Ele foi o primeiro a receber flores dela também, mas era uma tarde
muito quente e as mãos dele estavam frias.
Não era nervosismo como no dia em que se conheceram na cantina da
faculdade - era começo da noite e tinham amigos em comum; dividiram um guaraná
e foram para as suas salas de aula. Naquela noite, o intervalo durou mais do
que os habituais quinze minutos: assunto eles tinham de sobra. Falavam de
sonhos, de profissões, de futuro e até imaginavam filhos e casamento. Tudo que
nunca aconteceu.
Depois daquele dia, ela continuou, por algum tempo, a sentir o perfume, a
ouvir passos, a esperar por alguém que não iria mais voltar. A terra cobria
qualquer sonho que tivesse existido e era preciso seguir em frente. Não era a
primeira experiência de perda, um de seus irmãos já havia partido há alguns
anos – ela fazia roupinhas para bonecas de papel quando homens fardados bateram
palmas e ela foi atendê-los. Pediram que chamasse alguém mais velho, e quando
seu outro irmão voltou da conversa, Dante Ramon Ledesma parou de cantar naquela
casa, para sempre.
A vitrola emudecera e o rádio passou a falar mais baixo. Os sorrisos
diminuíram e os cabelos brancos apareceram em seus pais. Ela era jovem e o
namoro recente, mas a dor da perda era antiga conhecida e reservava dias
nublados e frios, mesmo já sendo primavera. E então ela se lembrou da canção
que dizia “as flores tem cheiro de morte”.
Tinha dezoito anos e o mundo se abriu sob seus pés naquele dia em que seu
pai a acordou após ouvir as notícias da rádio local. Nunca soube porque, mas
levava nos braços crisântemos amarelos.