18/11/2014

"No meio do caminho tinha uma pedra"

A memória é uma coisa interessante mesmo, você está completamente vulnerável as peças que ela é capaz de lhe pregar. 
Num belo dia, você está caminhando tranquilamente pela rua e passa alguém com o perfume que seu namoradinho da adolescência usava e... pronto! Você é teletransportada ao passado - se você fosse uma personagem de desenho animado sairia flutuando sentindo o cheiro, tentando alcançá-lo a todo custo.Curioso é que a pessoa com o perfume sempre está na contramão, o que torna o instante mais precioso, porque fugaz. 
Dia desses lavei uns 10 pares de sapatilhas (minhas e de minha filha) e coloquei-as lado a lado escoradas na parede para secarem. Peguei uma tangerina e enquanto comia distraidamente os gomos e olhava para aquelas sapatilhas multicolores lá veio a memória com algo tirado do fundo do baú: lembrei-me de uma vez que comprei uma sapatilha azul, um amor, mas naquela época as sapatilhas ainda não tinham caído muito no gosto popular e a maioria se resumia a ser preta ou marrom. 
Ser azul era algo totalmente ousado e inusitado - e eu adorei, mas a lembrança não veio assim, desse jeito que estou contando. 
Ela aconteceu num rompante, sem aviso prévio, com a voz de um ex-namorado falando dentro de minha cabeça: e esse sapato azul? Eu ri ao lembrar minha resposta: pois é, pena não ser vermelho, pois eu seria a Dorothy e iria para Oz! 
Passados meses de namoro ele nunca se acostumou, a cada vez que olhava meus pés ria e falava: e esse sapato azul? Eu não sei o que ele esperava que eu respondesse, nem se esperava algo. Fato é que eu comecei a rir olhando as sapatilhas coloridas - vermelha, cor de laranja, azul, cor de rosa, nude. Fiquei pensando o quanto essas cores todas teriam incomodado aquele antigo observador inconformado com a cor.
Legal é ver que os fragmentos de memória acabam ficando e os reincorporamos no presente. Há pouco tempo visitei uma grande amiga, daquelas de quase infância - nos conhecemos lá pelos 14 anos e até hoje quando vejo um gato de porcelana lembro-me do presente que ela me deu na festa de 15 e eu quebrei no mesmo minuto. Mas a memória que quero contar não é essa - é uma que veio da lembrança de uma das irmãs dela, infelizmente noutra dimensão há quase o mesmo tempo em que a memória existe.
Lembro-me de estar lá fazendo agenda, ouvindo música e lendo Capricho quando a irmã dela falou o quanto era importante que passássemos hidratante nos cotovelos, pois nenhum homem gostaria de estar passando a mão em nosso braços e encontrar uma pele toda áspera e dura nos cotovelos. Fiquei impressionada - nunca haveria de chegar a essa conclusão por mim mesma! 
Ocorre que o tempo passou e esqueci-me do conselho recebido, ou pensei que dele havia esquecido. Pois então, visitando essa minha amiga, que agora mora em São Paulo, não sei porquê e nem como veio a voz da irmã dela em minha cabeça e falei: sabe uma coisa que sua irmã falou e me marcou profundamente? Claro que ela não lembrava, mas morremos de rir disso. 
Aí pronto, virou o pano de fundo de todo o fim de semana que passamos juntas. Eu não tenho namorado porque ando esquecendo-me de passar hidratante nos cotovelos, claro. Saímos pra balada e lá chegando o namorado de minha amiga perguntou se tinha alguém para quem valesse a pena mostrar os cotovelos. Não, não tinha. Mas foi engraçado. Passeando de carro pela cidade me diziam para pôr os cotovelos pela janela. E pra completar ganhei um hidratante de presente dessa minha amiga. Se você quiser avaliar o grau de uma amizade basta analisar o quanto essa pessoa é capaz de zoar com você e ainda ser conseguir arrancar inúmeros sorrisos seus com a zoeira. E antes de viajar para vê-la eu sequer tinha ideia do que minha memória aprontaria comigo.
Recentemente reencontrei na internet uma pessoa que conheci uns 10 anos atrás e diante da incredulidade de que eu pudesse me lembrar de sua figura eu falei: lembro, sim. Lembro-me de seus olhos. Pronto. Claro que a pergunta imediata foi: meus olhos? Aí vai explicar porque que dentre tantas coisas possíveis e imagináveis a memória resolveu fotografar e guardar lá no fundo do baú o jeito como a pessoa olhava. Se eu fosse pintora ou desenhista seria mais fácil reconstituir isso que vejo tão claramente pela memória, mas como mal sei escrever, essa tarefa é um pouco mais complicada. Talvez ainda faça isso mais detidamente, com mais sensibilidade, mas numa conversa ficou vago, embora uma vaguidão específica. 
A máquina fotográfica de nossos sentidos está sempre disparando flashes e não temos muito controle sobre ela. São cores, sabores, cheiros, vozes, texturas que estão armazenados e o reencontro com fragmentos semelhantes é o gatilho para um mundo de imagens, de informações, de sentimentos. Às vezes as memórias nos fazem chorar, outras nos fazem sorrir. 
Assistindo a encenação da peça infantil "Vovô fugiu de casa", inspirada em livro de mesmo nome, eu não pude conter as lágrimas. O vovô da peça era incrivelmente semelhante ao meu pai, o vovô de minhas filhas - que não fugiu de casa, mas partiu para o outro lado há quase um ano. 
A boina do personagem me deu a certeza de que poderia ser meu pai. Assim como todos os senhores de cabelo branquinho que vejo andando de ônibus e me reportam a Florianópolis quando minha filha mais velha ainda era bebê e papai e mamãe foram ficar conosco. Papai ia de ônibus comprar o que precisasse, para aproveitar que ele não pagava mais passagem. Ele fazia o mamá para minha bebê e só ele conseguiu fazer isso. Ela tomava com o maior gosto o mamazinho que ele preparava, chegava a estalar a língua. Quando eles voltaram ao Rio Grande do Sul ela não quis mais saber da mamadeira. Nem mesmo a receita que papai me passou resolveu - não era o mamá do vovô. Acho que ela pequenininha também trazia as memórias para o presente e as confrontava com a realidade e, diante da não-correspondência, recusava porque ela queria o vovô ali, pequenina que era não conseguia entender distâncias - se é que algum dia a gente consegue...
Há um dito segundo o qual "recordar é viver" e conforme a gente vai acumulando memórias vai vendo que essa é a mais pura verdade. Recordar não é viver no passado, nem viver de passado. Recordar é trazer as vivências e experiências, os sabores e os desgostos, as lágrimas e as felicidade, o prazer e a dor para o presente para torná-lo mais palatável, agradável, produtivo ou seja lá o que for. E é por isso que quero lembrar de tudo que puder e  fazer o máximo possível para ter outras e mais e tantas e muitas lembranças no futuro, sejam elas agradáveis ou não. 
Assim como disse Drummond um dia: 
"Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra"

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