26/11/2014

Nada de mais, tudo demais



Olhou-se ao espelho e encarou aquela imagem que via, mas não sabia bem qual parte de si era. Avistou alguns fios de cabelos brancos, as primeiras marcas de expressões surgindo e disse: não há como fugir. Pobre garota... pensou que conseguiria? Não há jeito. Então, como saber? Como se pode saber? A toalha de banho, dependurada no box do chuveiro, balançou e ela sorriu sem muita certeza do que acabara de fazer. Olhou para a figura novamente e dessa vez o que viu foi uma redonda e amarela espinha no queixo. Quem era essa que ali estava agora? Espremeu a espinha e sorriu para as pupilas muito dilatadas: você é uma boba mesmo.
Janis Joplin sorria lindamente e seu cabelo, um pouco estranho para a época, chamava a atenção. Não, não era Janis Joplin, claro. Como poderia ser alguém que morreu? Não importava. A imagem que ela via era essa, esse era o real momentâneo. A garota sorria e um rapaz com colete jeans e bótons de bandas de rock sentado do outro lado parecia não se importar. Uma linda morena de cabelos encaracolados, saia esvoaçante e blusa caída aos ombros carregava Capitães de Areia, tentando entender algo em meio ao alvoroço. Era possível ver seu retorno inútil ao mesmo ponto e a movimentação ansiosa das páginas faltantes, querendo saber se chegaria ao fim da história naquele mesmo dia. Três adolescentes ouviam funk e a morena desconcertada lançava olhares de reprovação que sequer eram levados em conta. Uma senhora com sacolas de compras tentava se equilibrar e um gentil senhor, com talvez a mesma idade, ofereceu acento. Alguém gritou: Não somos bois! A frase ecoou por alguns segundos, mas em seguida foi substituída por risos e conversas simultâneas. Um papel sujo e surrado foi parar na mão de cada um: peço ajuda para alimentar minha família. A morena com o livro abriu sua bolsa colorida e ofereceu uma mão cheia de moedas, outros mais fizeram o mesmo, a maioria devolveu o bilhete olhando para o outro lado para não ver a vergonha refletida no semblante vazio e desarrumado que arrastava chinelos velhos, consertados muitas vezes e gastos quase ao fim, como sua própria vida. Um rapaz muito jovem contava sobre sua visita ao pequeno bebê de 28 semanas, mostrando a foto e balbuciando "tá indo". Exibindo um sorriso nervoso, olhava para os lados: vamos ver. Crianças pelas mãos subiam ou desciam desajeitadamente. Jovens vestidos de preto se abraçando e esquecendo a rebeldia de suas caveiras ao toque suave do beijo e dos braços largos a protegerem dos esbarrões e solavancos. Conversa nervosa ao telefone: já disse para você não me ligar! Você quer ferrar com minha vida! Um grupinho de jovens falava sobre coisas sem sentidos, cachorro e caixão, brincando de repeti-las até travar a língua. Riam ao embaralhá-las, achando graça ao entender errado, descreviam como queriam seus caixões, usavam seus celulares para pesquisar preços. Comparavam ao custo da cremação, segundo uma delas, seu último desejo. Alguém perdido perguntando onde está, outro bem localizado reclamando que não chegará nunca nesse ritmo. Palavras misturadas. Vidas misturadas. Odores misturados. Nada de mais, só mais um dia no ônibus.
Tudo demais. Saída do confuso emaranhado custou um pouco a ouvir novamente aquela voz do banheiro: como saber? Seguiu a passos rápidos, parecia que uma chuva forte se aproximava. O vento batia em seus olhos enchendo-os de poeira. Droga! Como saber? Era preciso andar de cabeça baixa, o vento continuava em redemoinhos. A rua mais longa, o refúgio mais distante. Pensou em como seria apenas se deixar levar, seguir até onde fosse possível. E depois? Não há fuga. "Não somos bois!". Não tinha certeza. Como poderia?

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