30/11/2014

Virada da lua

Me leve, leve
me ama, sem drama
na cama, na grama
me enrola na trama.
Não reze, não preze
assanha, abocanha
enrosca na entranha
com manha, estranha.
Não negue, me regue
me engana
com sua peçonha
esgana, arranha
amassa, abraça
disfarça, devassa
morra, renasça
e a gente sonha.
Me leve, leve
me doma, coma
depois toma
deixa aroma
no peito, no leito
amor liquefeito
sem preconceito.
Me leve, leve
arruaceiro, bandoleiro
bicho-de-carpinteiro
amor-perfeito
imperfeito
(in)suspeito
se jogue do parapeito
e me leve

não seja breve,
mas leve.




29/11/2014

Renascimento


Bebeu uns goles de poesia
recitou uns trechos de vinho
deu um sorriso de veludo
saiu com vestido carmim.
 Desejou na igreja
prostrou-se na boate
suou no chuveiro
confessou-se na internet.
 Tomou sorvete na farmácia
leu jornal no supermercado
comprou chicletes na banca
folheou revista no dentista
namorou na bombonière.
Chorou ouvindo piada
riu na hora do rush
deu uma flor ao pedinte
flertou com o moto boy.
Dormiu no cinema
assistiu o trânsito pela sacada
escreveu no espelho
e se olhou no papel.
Na poesia desenhada
no desenho escrito
e naquele nome grafado
rabiscado, rasurado
chorado, maltratado, amaldiçoado, envergonhado.
Não lembrou o futuro,
nem previu o passado.
Dobrou o tempo
e fez um aviãozinho de papel
- voou pela sacada.

Enfim, livre.

26/11/2014

Nada de mais, tudo demais



Olhou-se ao espelho e encarou aquela imagem que via, mas não sabia bem qual parte de si era. Avistou alguns fios de cabelos brancos, as primeiras marcas de expressões surgindo e disse: não há como fugir. Pobre garota... pensou que conseguiria? Não há jeito. Então, como saber? Como se pode saber? A toalha de banho, dependurada no box do chuveiro, balançou e ela sorriu sem muita certeza do que acabara de fazer. Olhou para a figura novamente e dessa vez o que viu foi uma redonda e amarela espinha no queixo. Quem era essa que ali estava agora? Espremeu a espinha e sorriu para as pupilas muito dilatadas: você é uma boba mesmo.
Janis Joplin sorria lindamente e seu cabelo, um pouco estranho para a época, chamava a atenção. Não, não era Janis Joplin, claro. Como poderia ser alguém que morreu? Não importava. A imagem que ela via era essa, esse era o real momentâneo. A garota sorria e um rapaz com colete jeans e bótons de bandas de rock sentado do outro lado parecia não se importar. Uma linda morena de cabelos encaracolados, saia esvoaçante e blusa caída aos ombros carregava Capitães de Areia, tentando entender algo em meio ao alvoroço. Era possível ver seu retorno inútil ao mesmo ponto e a movimentação ansiosa das páginas faltantes, querendo saber se chegaria ao fim da história naquele mesmo dia. Três adolescentes ouviam funk e a morena desconcertada lançava olhares de reprovação que sequer eram levados em conta. Uma senhora com sacolas de compras tentava se equilibrar e um gentil senhor, com talvez a mesma idade, ofereceu acento. Alguém gritou: Não somos bois! A frase ecoou por alguns segundos, mas em seguida foi substituída por risos e conversas simultâneas. Um papel sujo e surrado foi parar na mão de cada um: peço ajuda para alimentar minha família. A morena com o livro abriu sua bolsa colorida e ofereceu uma mão cheia de moedas, outros mais fizeram o mesmo, a maioria devolveu o bilhete olhando para o outro lado para não ver a vergonha refletida no semblante vazio e desarrumado que arrastava chinelos velhos, consertados muitas vezes e gastos quase ao fim, como sua própria vida. Um rapaz muito jovem contava sobre sua visita ao pequeno bebê de 28 semanas, mostrando a foto e balbuciando "tá indo". Exibindo um sorriso nervoso, olhava para os lados: vamos ver. Crianças pelas mãos subiam ou desciam desajeitadamente. Jovens vestidos de preto se abraçando e esquecendo a rebeldia de suas caveiras ao toque suave do beijo e dos braços largos a protegerem dos esbarrões e solavancos. Conversa nervosa ao telefone: já disse para você não me ligar! Você quer ferrar com minha vida! Um grupinho de jovens falava sobre coisas sem sentidos, cachorro e caixão, brincando de repeti-las até travar a língua. Riam ao embaralhá-las, achando graça ao entender errado, descreviam como queriam seus caixões, usavam seus celulares para pesquisar preços. Comparavam ao custo da cremação, segundo uma delas, seu último desejo. Alguém perdido perguntando onde está, outro bem localizado reclamando que não chegará nunca nesse ritmo. Palavras misturadas. Vidas misturadas. Odores misturados. Nada de mais, só mais um dia no ônibus.
Tudo demais. Saída do confuso emaranhado custou um pouco a ouvir novamente aquela voz do banheiro: como saber? Seguiu a passos rápidos, parecia que uma chuva forte se aproximava. O vento batia em seus olhos enchendo-os de poeira. Droga! Como saber? Era preciso andar de cabeça baixa, o vento continuava em redemoinhos. A rua mais longa, o refúgio mais distante. Pensou em como seria apenas se deixar levar, seguir até onde fosse possível. E depois? Não há fuga. "Não somos bois!". Não tinha certeza. Como poderia?

19/11/2014

Entre o fim e o começo

Acordei por volta de 6 da manhã (na verdade deveriam faltar uns 15 minutos para isso). Não foi o despertador que tocou, foi o dia que chamou. Abri os olhos e a falta da lente não me permitiu identificar muito bem o ponto brilhante no céu. Apertei bem... uma, duas, três vezes. Como durmo com a janela aberta (é apartamento e ela tem grades) eu ainda estava deitada quando vi a lua brilhando pelos últimos momentos nessa noite que já começava a se tornar dia. Fiquei observando a mudança gradativa na coloração do céu e o brilho do sol avançando lentamente. 
Faça-se a luz - e a luz foi feita. Fiquei pensando: o que ocorreu no intervalo entre a escuridão e a luminosidade? Esse intervalo, ainda que ínfimo, existiu e nele algo ocorreu. Costumamos pensar nas situações do início ao fim delas próprias, sem considerar muito os entremeios-  e são eles fundamentais. 
Vejamos... O que acontece entre o fim de um relacionamento e o início de outro ou da decisão de seguir sozinho? Entre o fim da vida de uma pessoa querida e aquele momento em que precisamos ficar em pé e seguir firmes? Entre sair do ventre materno e respirar? Entre o fim de um ano e o começo do outro? O fim de semana e o começo da próxima? O fim da infância e o começo da adolescência? Da adolescência a vida adulta?, aliás, você se lembra quando se tornou adulto? - provavelmente não, porque não existem marcos físicos, são passagens simbólicas; por vezes prolongadas, lentas... outras vezes ocorrem em um abrir e fechar de olhos, mas sempre acontecem.
Nada é estanque, tudo está relacionado. Sim, eu também gostaria de poder dormir naquele momento em que a saudade bate, em que a dor dói, em que a tristeza chega... queria poder dormir e simplesmente acordar em outro momento, mais sereno, mais feliz, mais tranquilo. Entretanto, a passagem é necessária. Há um rio caudaloso no meio dos acontecimentos e não dá para se jogar nele se você quiser continuar vivendo. Existem pontes para as travessias, às vezes escondidas por um nevoeiro, mas estão lá. Um dia o nevoeiro se dissipa e, se você não desistir de procurar, as encontrará. 
Pessoas são ponte, a arte é ponte, autoconhecimento é ponte. Entretanto apenas vê a ponte quem aperta os olhos para tentar um vislumbre do outro lado. Aquele que só olha para trás perde a visibilidade da cena. Fica atado ao que já foi, confuso por não saber mais o que é, perdido por temer o que virá. 
Há sempre algo acontecendo nos mais singelos momentos. Ainda quando você dorme a vida não pára, e "o diretor segue seu destino de cortar as cenas", como cantou Ana Carolina. 
Então... já que nesse longa metragem algumas cenas serão cortadas mesmo, é bom cuidar para não deixar marcas bruscas na montagem e produzir quebra no eixo. É bem provável que o enredo não siga aquele caminho inicialmente pensado, mas existem soluções de continuidade - e o resultado chega a surpreender! 
É claro que ter consciência disso não nos deve impedir de viver à procura do “frame” perfeito, mas seria interessante começar a se perguntar o que é exatamente a perfeição. A obsessão por ser feliz também pode levar à infelicidade. Não há como viver só em bons momentos, mesmo em uma comédia há cenas mais sérias, por vezes quase dramáticas. Não há pureza nos gêneros. Não há pureza na vida. Lembremos de Pessoa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Sigamos sem medo, "o acaso vai nos proteger".

18/11/2014

"No meio do caminho tinha uma pedra"

A memória é uma coisa interessante mesmo, você está completamente vulnerável as peças que ela é capaz de lhe pregar. 
Num belo dia, você está caminhando tranquilamente pela rua e passa alguém com o perfume que seu namoradinho da adolescência usava e... pronto! Você é teletransportada ao passado - se você fosse uma personagem de desenho animado sairia flutuando sentindo o cheiro, tentando alcançá-lo a todo custo.Curioso é que a pessoa com o perfume sempre está na contramão, o que torna o instante mais precioso, porque fugaz. 
Dia desses lavei uns 10 pares de sapatilhas (minhas e de minha filha) e coloquei-as lado a lado escoradas na parede para secarem. Peguei uma tangerina e enquanto comia distraidamente os gomos e olhava para aquelas sapatilhas multicolores lá veio a memória com algo tirado do fundo do baú: lembrei-me de uma vez que comprei uma sapatilha azul, um amor, mas naquela época as sapatilhas ainda não tinham caído muito no gosto popular e a maioria se resumia a ser preta ou marrom. 
Ser azul era algo totalmente ousado e inusitado - e eu adorei, mas a lembrança não veio assim, desse jeito que estou contando. 
Ela aconteceu num rompante, sem aviso prévio, com a voz de um ex-namorado falando dentro de minha cabeça: e esse sapato azul? Eu ri ao lembrar minha resposta: pois é, pena não ser vermelho, pois eu seria a Dorothy e iria para Oz! 
Passados meses de namoro ele nunca se acostumou, a cada vez que olhava meus pés ria e falava: e esse sapato azul? Eu não sei o que ele esperava que eu respondesse, nem se esperava algo. Fato é que eu comecei a rir olhando as sapatilhas coloridas - vermelha, cor de laranja, azul, cor de rosa, nude. Fiquei pensando o quanto essas cores todas teriam incomodado aquele antigo observador inconformado com a cor.
Legal é ver que os fragmentos de memória acabam ficando e os reincorporamos no presente. Há pouco tempo visitei uma grande amiga, daquelas de quase infância - nos conhecemos lá pelos 14 anos e até hoje quando vejo um gato de porcelana lembro-me do presente que ela me deu na festa de 15 e eu quebrei no mesmo minuto. Mas a memória que quero contar não é essa - é uma que veio da lembrança de uma das irmãs dela, infelizmente noutra dimensão há quase o mesmo tempo em que a memória existe.
Lembro-me de estar lá fazendo agenda, ouvindo música e lendo Capricho quando a irmã dela falou o quanto era importante que passássemos hidratante nos cotovelos, pois nenhum homem gostaria de estar passando a mão em nosso braços e encontrar uma pele toda áspera e dura nos cotovelos. Fiquei impressionada - nunca haveria de chegar a essa conclusão por mim mesma! 
Ocorre que o tempo passou e esqueci-me do conselho recebido, ou pensei que dele havia esquecido. Pois então, visitando essa minha amiga, que agora mora em São Paulo, não sei porquê e nem como veio a voz da irmã dela em minha cabeça e falei: sabe uma coisa que sua irmã falou e me marcou profundamente? Claro que ela não lembrava, mas morremos de rir disso. 
Aí pronto, virou o pano de fundo de todo o fim de semana que passamos juntas. Eu não tenho namorado porque ando esquecendo-me de passar hidratante nos cotovelos, claro. Saímos pra balada e lá chegando o namorado de minha amiga perguntou se tinha alguém para quem valesse a pena mostrar os cotovelos. Não, não tinha. Mas foi engraçado. Passeando de carro pela cidade me diziam para pôr os cotovelos pela janela. E pra completar ganhei um hidratante de presente dessa minha amiga. Se você quiser avaliar o grau de uma amizade basta analisar o quanto essa pessoa é capaz de zoar com você e ainda ser conseguir arrancar inúmeros sorrisos seus com a zoeira. E antes de viajar para vê-la eu sequer tinha ideia do que minha memória aprontaria comigo.
Recentemente reencontrei na internet uma pessoa que conheci uns 10 anos atrás e diante da incredulidade de que eu pudesse me lembrar de sua figura eu falei: lembro, sim. Lembro-me de seus olhos. Pronto. Claro que a pergunta imediata foi: meus olhos? Aí vai explicar porque que dentre tantas coisas possíveis e imagináveis a memória resolveu fotografar e guardar lá no fundo do baú o jeito como a pessoa olhava. Se eu fosse pintora ou desenhista seria mais fácil reconstituir isso que vejo tão claramente pela memória, mas como mal sei escrever, essa tarefa é um pouco mais complicada. Talvez ainda faça isso mais detidamente, com mais sensibilidade, mas numa conversa ficou vago, embora uma vaguidão específica. 
A máquina fotográfica de nossos sentidos está sempre disparando flashes e não temos muito controle sobre ela. São cores, sabores, cheiros, vozes, texturas que estão armazenados e o reencontro com fragmentos semelhantes é o gatilho para um mundo de imagens, de informações, de sentimentos. Às vezes as memórias nos fazem chorar, outras nos fazem sorrir. 
Assistindo a encenação da peça infantil "Vovô fugiu de casa", inspirada em livro de mesmo nome, eu não pude conter as lágrimas. O vovô da peça era incrivelmente semelhante ao meu pai, o vovô de minhas filhas - que não fugiu de casa, mas partiu para o outro lado há quase um ano. 
A boina do personagem me deu a certeza de que poderia ser meu pai. Assim como todos os senhores de cabelo branquinho que vejo andando de ônibus e me reportam a Florianópolis quando minha filha mais velha ainda era bebê e papai e mamãe foram ficar conosco. Papai ia de ônibus comprar o que precisasse, para aproveitar que ele não pagava mais passagem. Ele fazia o mamá para minha bebê e só ele conseguiu fazer isso. Ela tomava com o maior gosto o mamazinho que ele preparava, chegava a estalar a língua. Quando eles voltaram ao Rio Grande do Sul ela não quis mais saber da mamadeira. Nem mesmo a receita que papai me passou resolveu - não era o mamá do vovô. Acho que ela pequenininha também trazia as memórias para o presente e as confrontava com a realidade e, diante da não-correspondência, recusava porque ela queria o vovô ali, pequenina que era não conseguia entender distâncias - se é que algum dia a gente consegue...
Há um dito segundo o qual "recordar é viver" e conforme a gente vai acumulando memórias vai vendo que essa é a mais pura verdade. Recordar não é viver no passado, nem viver de passado. Recordar é trazer as vivências e experiências, os sabores e os desgostos, as lágrimas e as felicidade, o prazer e a dor para o presente para torná-lo mais palatável, agradável, produtivo ou seja lá o que for. E é por isso que quero lembrar de tudo que puder e  fazer o máximo possível para ter outras e mais e tantas e muitas lembranças no futuro, sejam elas agradáveis ou não. 
Assim como disse Drummond um dia: 
"Nunca me esquecerei desse acontecimento 
na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
tinha uma pedra 
tinha uma pedra no meio do caminho 
no meio do caminho tinha uma pedra"