25/09/2009

Trinta e muitas histórias


Sentada em um tronco de árvore deitado ao chão, chorava pela vida que não deu certo. Uma forte chuva caíra no dia do casamento, sinal de muita felicidade - diziam os convidados. Mas o suor que se misturava aos abraços e felicitações a irritava e parecia querer dizer qualquer coisa sobre o começo de um futuro que deveria ter sido bom. Era uma parte da vida que não tinha sido muito planejada, nem mesmo sonhada, mas que a barriga que já crescia tornava inevitável. Estava casando para ser feliz para sempre, como tinha de ser.
A indiferença talvez doesse mais do que tudo. Chorar por horas a fio e não ser notada, não ser consolada e nem ouvir uma voz a sussurrar no ouvido, dizendo que não tinha problema, que tudo iria passar. Lembrava com saudade do primeiro beijo que tinha sido dado à beira do rio, acompanhado das luzes que se refletiam na água e que a fizeram, por um momento, ficar tonta. Um beijo meio atrapalhado, como todo primeiro beijo. O pedido de casamento viera quinze dias depois e fora recebido como brincadeira, não sabia que o futuro já estava escrito.
Momentos felizes foram poucos, mas davam saudade. Um bilhetinho ao acaso, um telefonema pra saber trivialidades, um beijo roubado, o amor inesperado. Estranho como tudo se dissipa. Cacos de um vitral que tenta formar figura inteira, mas sempre se mostra esfacelado. Tentaram a felicidade; ao menos pensavam ter tentado. Presos a seu próprio egoísmo, ambos se perderam ao longo dos anos e ficava cada vez mais difícil se reencontrar.
O tronco era a própria dor. Solitário, desprendido de tudo que lhe importava, não fazia mais do que estar. Assim também estava ela, sentia-se como um fantasma com corpo. Solta num mundo que não era capaz de medir seus sentimentos, deixava rolar lágrimas com o gosto do mar que tão pouco pudera sentir e que tanto a convidara a viver. Chorou por horas, até perder a força. Resignada, entrou e tomou banho. Lavou a dor e se perfumou, precisava continuar sendo a mulher que todos esperavam que fosse.
A água que descia pelo ralo do banheiro levava consigo todos os sentimentos que não lhe eram permitidos. Afinal de contas, aprendera com a vida que uma mulher não precisa sentir, basta que cumpra seu papel e não altere a ordem das coisas. Novamente precisava mostrar felicidade e, depois de se vestir, saíram para encontrar amigos. Quando voltaram, como há anos, o amor cedeu lugar à rotina. Tudo estava em aparente ordem e tranqüilidade, mas enquanto o corpo gostava, a alma reclamava algo mais que ela ainda não conseguia entender.
Os dias eram iguais, às vezes esquecia e pensava que era feliz. Chegava a acreditar que a vida era assim mesmo e que não era a única que já sentira a angústia de ver seu castelo desabar pela força. De toda a dor sentida, a maior era a de ter compactuado com tudo, simplesmente por não ter coragem, por sentir medo, vergonha, ou por se sentir merecedora do sofrimento.
O nó na garganta amarrava também a voz e prendia o sorriso. Aprendera a evitar, a reconsiderar, a fingir. Fingia estar feliz e fazia isso tão bem que às vezes ela mesma acreditava. Conversavam pouco, tinham nada em comum. Quando o fim foi inevitável ela se viu sem ter um CD que gostasse, uma roupa que lhe agradasse, uma boa história em comum pra contar. De repente ela descobriu que dormira e envelhecera mais do que a própria idade.
Tinha pouco mais que vinte anos quando mudou seu destino, ou ele se fez acontecer. Das festas, dos risos, dos carnavais guardava lembranças e algumas fotos - apenas aquelas incapazes de causar forte dor de cabeça. Visitava o passado às vezes, sozinha, e sentia uma ponta de dor. Amores fugazes tinha tido alguns, experiências que a fizeram mulher pelo êxtase, alegria, dor, decepção, ilusão ou indiferença, tanto causada quanto sentida. Gostava de brincar, fora muito criança até os quatorze anos e tinha um pouco de menina em tudo o que fazia.
Mas a menina dormiu. Tão profundamente que não conseguia mais acordar. Por vezes se encontravam em sonhos ou pesadelos, ela e sua menina. Queriam, mas não sabiam como se reencontrar. Desejaram-se intensamente e trocavam segredos em encontros fortuitos. Os recalques vinham em seguida e a compensação era encontrada no trabalho, no cuidado com os filhos, na casa e seus afazeres sem-fim.
O sono aumentava. Nos pequenos encontros a menina ensinou a mulher a dormir pra fugir, esquecer, não sofrer. Ambas dormiam e o corpo desabitado cumpria a rotina que lhe era imposta. Ninguém podia desconfiar, nem ela mesma sabia que já não estava presente na sua própria vida. Tudo estava como todos queriam que fosse, mas seu coração a fazia desejar algo mais e em sua mente continuavam a passar filmes antigos que traziam lembranças queridas.
Lembrava das noites de sexta, geladas noites de inverno em que brindava a vida com seus amigos e bebiam vinho e contavam histórias, e faziam planos. Sonhavam ir longe, fazer diferente, ser mais do que poderiam esperar. Todos viviam a ingenuidade dos vinte anos em que tudo se mostrava mais fácil e os problemas se resolviam numa festa, numa roda de chope, num barzinho ouvindo alguém tocar canções que pareciam ter sido inspiradas na vida, amores e mágoas de cada um.
A primeira a abandonar o grupo tinha casado. Outros vieram integrar a trupe. Alguns mais foram saindo por casamento, mudança, estudo, trabalho. Ela tinha deixado todos pra fazer a diferença. Queria viver mais, fazer uma especialização, sair da cidade pequena em que vivera desde seu primeiro dia de vida pra conquistar novos lugares, fazer novos amigos, viver novas aventuras.
Arriscou. Deixou tudo: amigos, família, emprego. Chegou à nova cidade e conseguiu poucas horas de trabalho que não davam pra custear sua sobrevivência mínima. Os dias eram difíceis, mesmo morando na casa de um irmão que lhe emprestara um quarto. Apesar das dificuldades e da solidão que sentia, começou a estudar pra seleção de mestrado. Foi pega por uma gripe arrasadora, pois o litoral apresentava um clima bem diferente do de sua cidade natal. Quando estava quase recuperada, foi convidada a participar de uma festa onde conheceu aquele a quem pensou amar. Olharam-se, tremeram, o ar faltou. O convite pra dar um passeio veio meio tímido depois de algum tempo esperando que ela desse um sinal de interesse. Saíram e ele quis mostrar a ela o rio que logo adiante se encontraria com o mar. Timidamente se beijaram. Estava selada a promessa de felicidade.
Começaram a se ver todos os dias e o tempo parecia sempre curto demais. Ela tentava estudar e misturava as lições com a lembrança dos beijos e o desejo dos abraços. Esperava por ele como se as horas fossem longos anos que não passam. Amaram-se no impulso de viver tudo ao mesmo tempo. Acreditavam não poder mais ficar distante.
Por ironia, ficar distante era o que mais faziam depois de passado algum tempo. Os minutos juntos, agora sim, eram como infindáveis anos e a vontade de permanecer lado a lado parecia ter desaparecido. Ela assistia a um filme, ele batia papo no computador. Ela preparava aulas, ele assistia esportes. Ele dormia, ela pedia pra sair. Ela dormia, ele jogava futebol com os amigos. Ele escutava música, ela lia. Ela saía pra trabalhar, ele resolvia problemas de ambos. Quando se encontravam, por acaso, não sabiam o que fazer. Então saíam pra não ficar sozinhos. Não queriam se encontrar e reconhecer que já tinham se perdido.
Naquele dia em que a tristeza invadira sua alma, ela, perdida em seus pensamentos, contemplava o vento que varria as folhas secas e levantava poeira. Sentia como se o vento tentasse tirá-la dali, formando pequenos redemoinhos, despenteando o cabelo, mudando coisas de lugar. Ela lembrou que o vento do litoral era diferente, tinha sabor. Diferente também era o do Rio Grande do Sul onde o minuano cortava no inverno. Deu-se conta que o vento do norte inquietava porque nunca conseguia realizar aquilo que esperavam dele. Era morno demais.
Sentiu que sua vida estava como aquele vento, morna e insossa. E isso dava um tanto de angústia. Tanto tempo de solidão a levara a buscar compensação na cozinha, ganhara quase vinte quilos em poucos anos. O retrato do abandonar-se a si mesma, do não ter porque se querer. Embora a vida no norte tivesse feito perder um pouco do peso ganho, pois o calor pedia alimentos mais leves, frutas, verduras e muito líquido, a aparência continuava a distanciando muito da pessoa que um dia tinha sido.
Amigos, tinha perdido no tempo. E quem gostava tanto de brindar a vida, esqueceu o sabor das bebidas. Não que ele proibisse ou ficasse contrariado, mas porque motivos ela já não tinha. E porque assim era, permanecia fechada em seu mundo, cada vez mais distante de todos. Ensaiou novas amizades, chegou a compartilhar momentos, mas preferiu manter-se na redoma onde pensava ter segurança. Assustava o desejo de querer mudar, de querer viver diferente. Era melhor ignorar e seguir fazendo de conta que vivia feliz pra sempre, como deveria ser.
Quis mesmo que tudo ficasse bem, juntou a areia do castelo que se tinha desmanchado e tentou refazê-lo o melhor que pode. Mas não se deu conta que castelos de areia se desfazem, e que mesmo que pareçam firmes, são de areia. O castelo caiu três vezes devido a forte impacto. Na quarta vez a queda resultou de ação da própria natureza. O vento que sopra intermitentemente faz com que a areia mude de lugar e, aos poucos, ou desmancha o castelo, ou o deixa tão irreconhecível que mais parece um monte de areia ao acaso.
Assim estava tudo naquele dia em que ela sentou sobre o tronco. O vento tinha soprado muito e tinha mudado tanto a areia de lugar que ela olhava para o que tivera sido seu castelo e não entendia o que tinha acontecido. E então começou a chorar. E toda vez que ela chorava, a menina despertava e se sobrepunha a mulher. E nesse breve momento acordada, a menina viu que seu castelo outra vez estava sem forma, e sofreu porque já tinha cansado de refazê-lo.
Era mês de julho. Sentiu saudade do frio do sul, se lá estivesse ao menos poderia se enrolar em um cobertor. No calor estava sozinha. Nada a envolvia e, embora estivesse vestida, sentia-se nua.